O Enigma de Kaspar Hauser


O enigma de Kaspar Hauser, trata-se de um fato verídico, ocorrido em maio de 1828, na cidade de Nuremberg. Um adolescente que aparece numa praça. Era um estranho, ninguém sabia quem era ou de onde vinha. Trazia uma carta de apresentação anônima, contando que fora criado em um porão sem nenhum contato humano, desde o nascimento até aquela idade (provavelmente 15 ou 16 anos).

O adolescente não entendia nada do que lhe diziam, como consequência do enclausuramento, caminhava com dificuldade. Parecia um menino dentro de um corpo adolescente. Seu comportamento estranho para os padrões socioculturais estabelecidos, causava um misto de espanto e interesse. Era visto como um "garoto selvagem," apesar de ser dócil, simples e gentil. Kaspar tornou-se uma espécie de atração, todas as pessoas da cidade queriam vê-lo. O filme de Werner Herzog (O Enigma de Kaspar Hauser) o mostra, em uma cena junto com outros indivíduos, tidos como anormais em exposição num circo.

Kaspar possuía a peculiaridade de enxergar muito longe no escuro e a habilidade de se relacionar com animais, principalmente pássaros. Ao mesmo tempo, tinha medo de galinhas e fugia delas aterrorizado.

A forma como Kaspar percebia a realidade era visto pela sociedade da época como "diferente," estranha, o "outro". Ele próprio se via como um estranho, deslocado, frágil e impotente diante de uma realidade que não conseguia compreender, pelo menos não da forma como esperavam que ele compreendesse. Ou seja, ele estava despido dos "filtros" e estereótipos culturais que condicionam a percepção e o conhecimento. Logo, torna-se um incômodo, pois vê a realidade, com olhos "subversivos", que não aceitam os referenciais que a sociedade insiste em lhe impor, negando, de certa forma, a ordem social vigente. Ele olha as pessoas, os objetos e as situações com o espanto e a perplexidade de um olhar "puro," sem "filtros" ou estereótipos perceptuais. A sua aproximação cognitiva da realidade é direta, ou seja, percebe o mundo de uma maneira ainda não programada pela estereotipia cultural.

Esses "filtros" ou estereótipos, são garantidos e reforçados pela linguagem. Assim, o processo de conhecimento da realidade é regulado por uma contínua interação de práticas culturais de percepção. Mesmo após adquirir uma linguagem suficiente para se comunicar, Kaspar não conseguia atribuir significado às coisas. Assim, somos levados a pensar que não apenas o sistema perceptual, mas as estruturas mentais e a própria linguagem são resultantes da prática social, ou seja, as práticas culturais "modelam" a percepção da realidade e o conhecimento por parte do sujeito.

Izidoro Blikstein, autor do livro ‘Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade’, afirma: aquilo que concebemos como realidade é apenas uma ilusão, pois a práxis opera em nosso sistema perceptual, ensinando-nos a "ver" o mundo com os "óculos sociais" e gerando conteúdos visuais, tácteis, olfativos e gustativos que aceitamos como naturais. O comportamento de Kaspar abala os fundamentos da ilusão referencial, pois não "enxerga" a realidade da forma como os outros esperam. Assim como alguém que duvida, confronta ou questiona conceitos preestabelecidos, irá sofrer um processo de estigmatização, não apenas como "diferente" ou "anormal," mas também como alguém que não possui identidade.

Está escrito na lápide de Kaspar Hauser, no cemitério de Ansbach, na Alemanha. "Hic occultus occultu uccisus est", quer dizer: "Aqui jaz um desconhecido assassinado por um desconhecido."